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Considerando a população atendida nos serviços públicos, além da
labilidade do sintoma é importante estar atento à complexidade das
variáveis socioculturais que exige dos profissionais uma
investigação mais apurada de questões subjetivas, antes que
sejam formulados diagnósticos por meio de instrumentos padronizados.
Examinemos alguns exemplos:
João, 1 ano e 3 meses, é trazido por sua mãe, encaminhado pelo pediatra. Chegam após tomarem três conduções, acompanhados de mais dois filhos que carregam sacolas. A queixa é que João está batendo a cabeça na parede, sintoma preocupante que poderia ser um indício de conduta pertinente ao espectro autista. A profissional faz uma primeira entrevista detalhada, incluindo a avaliação da situação sociocultural e descobre que moram num terreno com outras famílias. A mãe deixa o menino durante todo o dia numa cama beliche de maneira que ele não saia de lá, embora João saiba caminhar desde que completou 13 meses. Ela teme que ele saia pelo portão e seja atropelado na via movimentada. A profissional encarregada da triagem levanta a hipótese de que o sintoma seja a resposta à impossibilidade de exercício da motricidade e propõe à mãe deixá-lo fora da cama por duas semanas, marcando retorno. Como não voltam na data estipulada, a profissional liga para a mãe e esta lhe diz: “Doutora, ele ficou bom no primeiro dia que o deixei fora da cama! Está correndo feliz! Por isso não retornei!”.
Outro ponto a ser destacado: diagnósticos na infância não devem ser feitos apenas a partir de anamnese com os pais. Existe o risco de que o técnico caia na armadilha de um enfoque exclusivo, num “intersubjetivismo” das relações familiares, se esquecendo da produção singular da criança, ou seja, que aquilo que acontece com essa criança pode ser muito diferente daquilo que os pais conseguem observar. Foi o que aconteceu com a mãe de José, de 3 anos e 10 meses. Ela foi à consulta sozinha, apresentando queixas que, num primeiro momento, nos fizeram pensar que seu filho seria uma criança com funcionamento psíquico bastante comprometido. Investigando, descobrimos que ela costumava rodar pelos diferentes setores do hospital, carregando o menino em filas, pelas madrugadas. Às vezes, levava também o marido, que dizia ser esquizofrênico: “Todos sabem quem eu sou no hospital!”. Com “essa experiência”, quase sempre conseguia que um médico residente inexperiente solicitasse novos exames e fizesse prescrições. Esperava em nosso serviço que medicássemos a criança que descrevia como “muito doente dos nervos”. Optamos por vincular a mãe à equipe, pois concluímos que ajudar o filho, naquele momento, seria providenciar creche para que pudesse permanecer mais tempo num ambiente social que lhe permitisse novos vínculos, além dos que tinha na família.
A partir desse trabalho de mediação interinstitucional conseguimos que a criança ficasse numa creche e se readaptasse.
Outro aspecto relevante nos processos diagnósticos da clínica infantil é o trabalho para conseguirmos a adesão necessária para um tratamento de longo prazo, quando a gravidade é logo detectada. Não basta diagnosticar, pois muitas vezes precisamos de um tempo inicial para ajudar os pais a obter condições psíquicas de “absorver” o diagnóstico grave. É fundamental também observar as reações no restante da família. Isso aconteceu no caso de Marcos, de 4 anos, levado ao Cria pelos pais. Eles nos falam de uma criança com graves problemas de interação social, relatam a situação tentando minimizar os sintomas que de imediato configuram um quadro de autismo. Insistem num novo exame fonoaudiológico com esperança de encontrar outra etiologia, apesar de terem passado por um excelente profissional da área e reconhecerem a capacidade do profissional. Os dois se mostram culpados e se desgastam em ataques e recriminações – o que exige uma escuta prolongada, ao longo de várias entrevistas.
Durante essa etapa da avaliação, o irmão mais velho passa a apresentar sintomas de agitação na escola, por isso solicitamos que o levassem para falar do que está sentindo com a mudança dos pais a partir do atendimento de Marcos. A proposta é ajudá-lo a entender o motivo que deixou seus pais mais ausentes e preocupados. Após esse momento de cuidado da equipe em relação a ele, o sintoma na escola desaparece. Neste caso, mesmo com diagnóstico feito nos contatos iniciais, os profissionais do Cria necessitaram de seis meses de trabalho para introduzir Marcos num tratamento intensivo.
João, 1 ano e 3 meses, é trazido por sua mãe, encaminhado pelo pediatra. Chegam após tomarem três conduções, acompanhados de mais dois filhos que carregam sacolas. A queixa é que João está batendo a cabeça na parede, sintoma preocupante que poderia ser um indício de conduta pertinente ao espectro autista. A profissional faz uma primeira entrevista detalhada, incluindo a avaliação da situação sociocultural e descobre que moram num terreno com outras famílias. A mãe deixa o menino durante todo o dia numa cama beliche de maneira que ele não saia de lá, embora João saiba caminhar desde que completou 13 meses. Ela teme que ele saia pelo portão e seja atropelado na via movimentada. A profissional encarregada da triagem levanta a hipótese de que o sintoma seja a resposta à impossibilidade de exercício da motricidade e propõe à mãe deixá-lo fora da cama por duas semanas, marcando retorno. Como não voltam na data estipulada, a profissional liga para a mãe e esta lhe diz: “Doutora, ele ficou bom no primeiro dia que o deixei fora da cama! Está correndo feliz! Por isso não retornei!”.
Outro ponto a ser destacado: diagnósticos na infância não devem ser feitos apenas a partir de anamnese com os pais. Existe o risco de que o técnico caia na armadilha de um enfoque exclusivo, num “intersubjetivismo” das relações familiares, se esquecendo da produção singular da criança, ou seja, que aquilo que acontece com essa criança pode ser muito diferente daquilo que os pais conseguem observar. Foi o que aconteceu com a mãe de José, de 3 anos e 10 meses. Ela foi à consulta sozinha, apresentando queixas que, num primeiro momento, nos fizeram pensar que seu filho seria uma criança com funcionamento psíquico bastante comprometido. Investigando, descobrimos que ela costumava rodar pelos diferentes setores do hospital, carregando o menino em filas, pelas madrugadas. Às vezes, levava também o marido, que dizia ser esquizofrênico: “Todos sabem quem eu sou no hospital!”. Com “essa experiência”, quase sempre conseguia que um médico residente inexperiente solicitasse novos exames e fizesse prescrições. Esperava em nosso serviço que medicássemos a criança que descrevia como “muito doente dos nervos”. Optamos por vincular a mãe à equipe, pois concluímos que ajudar o filho, naquele momento, seria providenciar creche para que pudesse permanecer mais tempo num ambiente social que lhe permitisse novos vínculos, além dos que tinha na família.
A partir desse trabalho de mediação interinstitucional conseguimos que a criança ficasse numa creche e se readaptasse.
Outro aspecto relevante nos processos diagnósticos da clínica infantil é o trabalho para conseguirmos a adesão necessária para um tratamento de longo prazo, quando a gravidade é logo detectada. Não basta diagnosticar, pois muitas vezes precisamos de um tempo inicial para ajudar os pais a obter condições psíquicas de “absorver” o diagnóstico grave. É fundamental também observar as reações no restante da família. Isso aconteceu no caso de Marcos, de 4 anos, levado ao Cria pelos pais. Eles nos falam de uma criança com graves problemas de interação social, relatam a situação tentando minimizar os sintomas que de imediato configuram um quadro de autismo. Insistem num novo exame fonoaudiológico com esperança de encontrar outra etiologia, apesar de terem passado por um excelente profissional da área e reconhecerem a capacidade do profissional. Os dois se mostram culpados e se desgastam em ataques e recriminações – o que exige uma escuta prolongada, ao longo de várias entrevistas.
Durante essa etapa da avaliação, o irmão mais velho passa a apresentar sintomas de agitação na escola, por isso solicitamos que o levassem para falar do que está sentindo com a mudança dos pais a partir do atendimento de Marcos. A proposta é ajudá-lo a entender o motivo que deixou seus pais mais ausentes e preocupados. Após esse momento de cuidado da equipe em relação a ele, o sintoma na escola desaparece. Neste caso, mesmo com diagnóstico feito nos contatos iniciais, os profissionais do Cria necessitaram de seis meses de trabalho para introduzir Marcos num tratamento intensivo.
Autora:Vera Blondina Zimmermann
Fonte: Mente e cérebro